Sérgio Godinho

Etelvina
Etelvina com seis meses já se tinha de péFoi deixada num cinema depois da matinéeCom um recado na lapela que dizia assim"Quem tomar conta de mimQuem tomar conta de mimSaiba que fui vacinadaSaiba que sou malcriada" Etelvina com dezasseis anos já conheciaTodos os reformatórios da terra onde viviaEntregaram-na a uma velha que ralhava assim"Ai menina sem juízoNem mereces um sorrisoVais acabar num bueiroSem futuro nem dinheiro" Eu durmo sozinha à noiteVou dormir à beira rio à noite à noiteAcocorada com o frio à noite à noiteEtelvina era da rua como outros são do campoSua cama era um caixote sem paredes nem tampoSua janela uma ponte que dizia assim:"Dentro das minhas cidadesJá não sei quem é ladrãoSe um que anda fora das gradesLetras de cancionesSe outro que está na prisão"Etelvina só gostava era de andar pela cidadeA semear desacatos e a colher tempestadeA meter com os ricaços a dizer assim"Você que passa de carroFerre aqui a ver se eu deixoVenha cá que eu já o agarroDou-lhe um pontapé no queixo" Eu durmo sozinha à noiteEtelvina já cansada de viver sem ninguémA não ser de vez em quando amores de vai e vemPôs um anúncio no jornal que dizia assim"Mulher desembaraçadaQuer viver com alma irmãDe quem não seja criadaDe quem não seja mamã" Etelvina já sabia que não ia encontrarNem um príncipe encantado nem um lobo do marSó alguém com quem pudesse dizer assim"O amor já não é cegoAbre os olhinhos à genteFaz lutar com mais apegoA quem quer vida diferente"O seu homem encontrou-o à noiteA dormir à beira rio à noite à noiteAcocorado com o frio à noite à noite From Letras Mania